A Caminho de Santiago

A minha amiga Katrin estava sempre a queixar-se de que eu caminhava depressa demais. Apesar da sua boa-disposição, refletida no sorriso largo que nunca a abandona, não houve dia algum em que não se lamentasse de ter acedido ao meu convite para me acompanhar pelo Caminho Português de Santiago. Depois da etapa que liga o Porto a Vilarinho, iniciámos a viagem até Barcelos, com uma paragem para almoçarmos no Restaurante Pedra Furada, por onde já passaram peregrinos de mais de 100 países e onde fomos muito bem recebidas.
01 Capela de Nossa Senhora da Fonte
À entrada de Barcelos por Barcelinhos ninguém fica indiferente ao que se posta defronte de si. Como de costume, a Kratin seguia-me a 100 metros de distância, o que me concedeu algum tempo para fotografar um quadro belíssimo composto pela ponte medieval, uma edificação gótica do século XIV que liga Barcelos a Barcelinhos sobre o Rio Cávado; pelo Paço dos Condes de Barcelos, construído na primeira metade do século XV e que funciona como museu arqueológico; e pela Igreja Matriz, um templo de transição do românico para o gótico cuja edificação se iniciou na segunda metade do século XIV. À entrada da ponte encontra-se a Capela de Nossa Senhora da Ponte, instituída em 1328, outrora local de paragem obrigatória para quem trilhava os Caminhos de Santiago, onde ainda hoje se podem observar bancos e pias de pedra (lava-pés) para descanso dos peregrinos.

02 Paços dos Condes de Barcelos
A travessia da Ponte Medieval proporciona uma vista magnífica sobre o Rio Cávado. Uma mão-cheia de banhistas ocupava a praia fluvial a montante, desfrutando do calor ameno desse dia primaveril, e assistindo placidamente a uma prova de Jet Sky organizada, curiosamente, por uma associação chamada Amigos da Montanha, tal como se mostrava num cartaz enorme colocado no areal. Sabíamos que há em Barcelos um albergue para peregrinos, mas a nossa intenção era seguir logo que possível para Ponte de Lima. Na outra margem do rio subimos aos Paços dos Condes de Barcelos, que funciona como Museu Arqueológico do concelho desde o início do século XX. No seu interior estivemos a apreciar o Cruzeiro do Galo, onde está representada a famosa “Lenda do Galo de Barcelos”.

03 Igreja Matriz
Depois de termos apreciado a vista singular oferecida pelos Paços do Concelho, a quem os barcelenses chamam Castelo (como ficámos a saber por um residente que nos contou a Lenda do Galo), sentámo-nos ambas nos bancos corridos da Igreja Matriz, não só para recuperar forças, abençoadas pela temperatura fresca que se fazia sentir no interior do templo, mas também para um breve momento de autorreflexão. A Katrin, fazendo jus à sua tendência relaxada, deixou-se adormecer por uns bons quinze minutos, tempo que eu soube respeitar e que aproveitei para observar os belos interiores da Igreja.

04 Guerreiro e Santo
D. Nuno Álvares Pereira, o Condestável, considerado o maior estratega e génio militar português, é o patrono da infantaria nacional. Está intimamente ligado à conservação da independência de Portugal no terceiro quartel do século XIV. Vencedor de todas as batalhas que empreendeu, foi cantado por Luiz Vaz de Camões em Os Lusíadas. “Ditosa pátria que tal filho teve”, escreveu o poeta na sua obra-prima. Após a morte da mulher, dedicou-se à vida religiosa, tornando-se beato. Apesar de ter abandonado a vida militar, a tradição conta que mantinha debaixo do hábito de monge a cota de malha de soldado, para o caso de ser necessário voltar servir o país com a espada. A escultura ao pé do Edifício da Câmara Municipal (outrora Hospital do Espírito Santo, que serviu de assistência aos peregrinos) é uma homenagem ao beato, canonizado em 2009 como São Nuno de Santa Maria pelo Papa Bento XVI. A cinquenta metros da estátua, encontrámos o Largo do Apoio, o primeiro largo do burgo, onde se localiza a casa onde D. Nuno terá nascido, ou pelo menos residido, na sua qualidade de 7.º Conde de Barcelos.

05 Rua Direita
Subimos a Rua Direita, hoje apelidada de Rua D. António Barroso em homenagem ao ilustre bispo barcelense, também imortalizado numa escultura defronte da Câmara Municipal da autoria do arquiteto Marques da Silva e do escultor Sousa Caldas. A Rua Direita é uma das mais antigas do centro histórico e respira comércio por todos os poros. Possui edifícios de grande interesse histórico, como a Casa de Mathias Gonçalves da Cruz, n.º 79-93, revestida com azulejos policromos, as instalações da Caixa Geral de Depósitos, com a assinatura do arquiteto Ernesto Korrodi, ou o edifício com o n.º 121 a 129, do arquiteto José Vilaça.

06 Flormar
Em direção à Rua Direita, espreitámos a programação do Theatro Gil Vicente, onde iria decorrer na semana seguinte um Festival de Teatro Amador. Em frente ao Theatro encontra-se uma escultura do Mestre José Rodrigues, em homenagem aos Poetas. No início da Rua Direita entrámos na Flormar, uma conhecida rede comercial de cosmética dedicada à beleza das mulheres. Como tive alguma dificuldade para explicar o que pretendia, usei a linguagem gestual com a funcionária que me atendeu, enquanto a Katrin se ria às gargalhadas com a minha mímica. Deitei a cabeça nas mãos e bocejei, para dizer que tinha dormido pouco, e depois apontei para as minhas olheiras. A funcionária sorriu e propôs-me um corretor de olheiras e um pó para o rosto. Rejuvenesci cinco anos nessa loja, despedi-me cheia de sorrisos e agradecimentos e pus-me logo a caminho.

07 Centro Óptico 91
A Katrin parou em frente do Centro Óptico 91, para me dizer que teria sido melhor se eu tivesse comprado óculos escuros. Respondi-lhe que o corretor e o pó de rosto haviam feito um milagre, fazendo desaparecer as minhas olheiras, mas ela insistiu para que entrássemos na loja porque queria comprar um par de óculos de sol. Bem à maneira dela, insegura como é, experimentou tantos exemplares – grandes e pequenos, de todas as cores e feitios, com armações simples e complexas – que tive de apanhar um pouco de ar, pois já não conseguia dar mais nenhuma opinião. Algum tempo depois saiu da loja com três pares de óculos, todos de sol, e não se cansou de elogiar a oferta disponível na loja – razão para as suas hesitações, disse ela – e a funcionária que atendeu.

08 Time Out
Um pouco mais acima parámos na loja da TIME OUT, que nos fez reavivar memórias da Califórnia, onde ambas passámos um ano sabático; o ambiente leve e descontraído que se sentia, não apenas na decoração da loja, muito bem conseguida, mas também nas peças de vestuário que se dispunham por todo o espaço, foi para ambas uma agradável surpresa. Seduzidas pelo conceito da marca, não tardámos a entrar, a provar calças, camisas e camisolas como se quiséssemos levar connosco tudo o que estava em exposição. Apesar do espaço limitado das nossas mochilas, eu comprei um top de alças cor-de-rosa e uma t-shirt com um padrão de estilo marinheiro, enquanto a Katrin se decidia por um par de calções de ganga que achou muito confortável. Para surpresa de todos, pediu à funcionária da loja que a deixasse deitar ao lixo os calções, que trazia vestidos, embora tivessem sido comprados há pouco tempo. A Katrin é mesmo assim.

09 Perfumaria Eros
Continuámos a percorrer a rua até nos determos na Perfumaria Eros, uma loja que viera mesmo a calhar porque eu e a minha amiga estávamos a precisar de um aroma que nos deixasse mais confortáveis depois do merecido banho ao fim de cada etapa da caminhada. Comprei um desodorizante e uma água de perfume muito agradáveis, mas a minha amiga Katrin, como seria de esperar, decidiu submeter-se a uma consulta de beleza com uma assistente de uma marca coreana de tratamento de pele, pois queria ficar com a pele brilhante como nunca. Trouxe consigo um kit dessa marca e ainda batom e rímel de uma outra marca conhecida, como se à noite tivéssemos de ir a um baile de debutantes. Ah, Katrin!

10 Confeitaria Colonial
Ao fim da Rua Direita abre-se o Largo da Porta Nova, onde se encontra a Torre do mesmo nome, datada do século XV, que fazia parte da muralha de Barcelos e que desde o século XVII até 1932 funcionou como estabelecimento prisional. Junto ao Templo do Bom Jesus da Cruz, sentámo-nos na esplanada da Confeitaria Colonial, onde pudemos descansar, beber um sumo de fruta e provar a deliciosa doçaria da casa. Eu comi uma das famosas natas portuguesas, e a Katrin escolheu uma glória, ou glorinha, como nos disse o funcionário que nos serviu. Eu e a minha amiga rimo-nos dos diminutivos que, segundo nos disseram, são uma caraterística das gentes do norte: Barcelinhos, glorinhas,... e outros de que já não me recordo.

11 Templo do Bom Jesus da Cruz
Sentadas na esplanada da Confeitaria Colonial pusemo-nos a observar o Templo do Bom Jesus da Cruz, que pouco depois fomos visitar. Ficámos a saber que é o atual palco da afamada Festa das Cruzes barcelense, que ocorre anualmente nos primeiros dias de maio. Conta a tradição que o sapateiro João Pires, nos idos de 1500, quando regressava da missa da ermida do Salvador e passava pelo Campo da República, vulgarmente conhecido por Campo da Feira, observou uma cruz semienterrada na terra, que interpretou como sendo um sinal sagrado. Tendo dado o alerta, logo se lhe juntou muito povo, e puderam todos assistir ao aparecimento de outras cruzes, que surgiam a princípio como nódoas negras, transmutando-se mais tarde em cruzes perfeitas, que, por mais que se escavasse, não se lhes encontrava o fim. Era um milagre, disseram todos, o “milagre da cruz”. Estava, assim, encontrado mais um local de culto que logo atraiu crentes, rezas e procissões.

12 Boutique PT Chior
Com o estômago reconfortado com o lanche e a alma enriquecida pela espiritualidade dos barcelenses, começámos a subir a Avenida da Liberdade. Dessa vez eu ia atrás da Katrin, seguindo-lhe os passos com a mesma dolência com que ela caminhava. A certa altura, a minha amiga entrou num estabelecimento comercial, a Boutique PT Chior. Quando a segui pela loja dentro, já ela estava a mirar-se ao espelho com um vestido encostado ao corpo que lhe dava pelos joelhos. A proprietária atendia um cliente francês que havia comprado um casaco concebido pelo ateliê “ppbungor” para oferecer à mulher. Esse cliente reside em Barcelos, e soube mais tarde que é ele quem compra sempre a roupa para a mulher. “Que sorte que ela tem!” – disse a Katrin, mas eu respondi-lhe que não estava de acordo, pois prefiro ser eu mesma a comprar a minha roupa. São tantas as diferenças que unem a nossa amizade, pensei.

13 Campo da República
Depois de termos saído da Boutique PT Chior atravessámos a Avenida da Liberdade, atraídas pela feira de produtos locais que havia pouco nos tinha prendido a atenção. A feira oferecia um pouco de tudo: cestaria, bordados, vestuário e calçado; frutas e legumes; isto é: um sem-fim de produtos que é comercializado naquele lugar desde o princípio do século XV. Apesar de estar localizado no centro urbano, o espaço da feira é amplo, pontuado no seu centro por um belo chafariz do século XVII, da autoria de um tal João Lopes, como pudemos apurar no website do Barcelos Plaza. O espaço é designado por Campo da República, mas todos o conhecem e se lhe referem como Campo da Feira.

14 Farmácia Oliveira
Atravessámos o Campo da Feira com um Galo de Barcelos de cerâmica na mochila e seguimos a orientação do GPS, que nos indicou o caminho para Ponte de Lima através da Avenida Dom Nuno Álvares Pereira. Na esquina dessa via com a Avenida dos Combatentes da Grande Guerra localiza-se a Farmácia Oliveira. A Katrin, que sofre de enxaquecas desde que a conheço, aproveitou para receber aconselhamento farmacêutico e acrescentar mais um medicamento aos que ela já transportava consigo. Nesse dia disse-lhe, com ar de gozo, que pensava que para alguém ter dores de cabeça seria necessário que tivesse um pouco de cabeça. Ela sorriu da minha ironia, mas respondeu-me de pronto que havia muita gente com cabeça que não sabia fazer uso dela. Não pude deixar de me rir da sua resposta, e a seguir abraçámo-nos como verdadeiras amigas que ainda somos. Assim bem-dispostas, e simultaneamente felizes por termos conhecido um pouco de Barcelos, prosseguimos em direção a Ponte de Lima, a nossa etapa seguinte.

